A COVID-19 e o Acidente de Trabalho

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Se um empregado adquirir a COVID-19, pode surgir a dúvida de que a contaminação ocorrera no trabalho. Afinal, será que essa doença pode ser considerada como acidente de trabalho?

Passa-se à análise.

O conceito de acidente de trabalho é previsto na legislação previdenciária. O artigo 20 da lei 8.213/81 prevê que as doenças ocupacionais são consideradas acidente de trabalho, e podem ser das seguintes espécies:

I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;

II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso no item anterior.

A COVID-19 pode se encaixar na hipótese tratada no incio II, ou seja, como doença do trabalho, adquirida em razão das circunstâncias em que a atividade é realizada. Ainda que não exista menção da doença na relação específica elaborada pelo Ministério da Economia (Secretaria do Trabalho), isso não impede tal caracterização. Afinal, preconiza o §2º do mencionado artigo 20:

Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.”

Contudo, o §1º, “d”, do artigo 20 da Lei 8.213/91 indica que, em uma primeira análise, não são consideradas doenças do trabalho as doenças endêmicas adquiridas por habitante de região em que elas se desenvolvam. Em uma análise preliminar, portanto, a “coronavirus disease” não seria doença ocupacional.

É verdade que a doença COVID-19 não é endêmica. Ela não está relacionada a uma região, tampouco desenvolve-se dentro de um número esperado de casos para um determinado período. Com efeito, a endemia pode ser caracterizada como:

a ocorrência de um agravo dentro de um número esperado de casos para aquela região, naquele período de tempo, baseado na sua ocorrência em anos anteriores não epidêmicos. Desta forma, a incidência de uma doença endêmica é relativamente constante, podendo ocorrer variações sazonais no comportamento esperado para o agravo em questão.” (Alexandre Sampaio Moura e Regina Lunardi Rocha. Endemias e Epidemias: dengue, leishmaniose, febre maculosa e leptospirose. – Belo Horizonte: Nescon/UFMG, 2012)

A doença ocasionada pelo coronavírus está causando, isso sim, uma epidemia, qualificada pelo fato de acometer todo o mundo (pandemia). Para os mesmos autores acima citados, a epidemia:

representa a ocorrência de um agravo acima da média (ou mediana) histórica de sua ocorrência. O agravo causador de uma epidemia tem geralmente aparecimento súbito e se propaga por determinado período de tempo em determinada área geográfica, acometendo frequentemente elevado número de pessoas. Quando uma epidemia atinge vários países de diferentes continentes, passa a ser denominada pandemia.

Verifica-se, destarte, que a epidemia e a pandemia são mais graves que a endemia. Sua disseminação é súbita, mais rápida e atinge maior número de pessoas do que o esperado em uma endemia. Assim sendo, se há uma presunção legal de que a doença endêmica não é ocupacional, com muito mais razão tal conclusão deve ser alcançada quanto à doença epidêmica. Afinal, ela pode ter ocorrido em qualquer ambiente, não necessariamente no ambiente de trabalho. O artigo 20, §1º, “d”, da Lei 8.213/91 merece uma interpretação extensiva.

Evidentemente, como se depreende da própria regra legal, a presunção de inexistência da natureza ocupacional é meramente relativa. A parte final da alínea “d” do mencionado artigo de lei prescreve que, no caso de comprovação de exposição ou contato direto com a doença em razão da natureza da atividade laboral, a moléstia será considerada como ocupacional.

Ressalta-se que o que deve ser provado é que a natureza do trabalho expõe o trabalhador a um risco acentuado, em condições superiores ao que se verifica fora do ambiente laboral. Não significa que se deve provar a efetiva contaminação, porque se trataria de prova impossível. Ou seja, demonstrando-se que no trabalho existe um risco maior de se contrair a moléstia, isso já será suficiente para afastar a presunção legal e conferir a proteção acidentária ao trabalhador.

Assim, entende-se que o nexo causal entre a COVID-19 e o trabalho estará evidenciado sempre que a natureza do serviço implicar contato do trabalhador com pessoas contaminadas. Isso é facilmente demonstrável pelo pessoal da saúde. Trata-se, como visto, de um juízo de razoabilidade e probabilidade. Um trabalhador do hospital tem chances muito maiores de se contaminar com o vírus no hospital do que nos demais espaços de convívio.

Em relação a outras profissões (atendentes de supermercados, postos de gasolina, etc.), deve-se demonstrar que estiveram em contato com pessoas contaminadas e, ainda, a ausência de métodos de prevenção, como fornecimento de máscaras ou de álcool gel, inobservância de normas quanto à redução de aglomerações e demais medidas necessárias para reduzir a disseminação viral. Tais condições de trabalho aumentam sobremaneira, no juízo de proporcionalidade e probabilidade acima mencionado, a chance de se caracterizar a natureza ocupacional da doença.

A respeito da matéria, o Supremo Tribunal Federal suspendeu o artigo 29 da Medida Provisória 927/20, em controle concentrado e cautelar de constitucionalidade. A norma trazia a previsão de que a COVID-19 não seria considerada doença ocupacional, salvo prova do nexo causal. O dispositivo suspenso parecia mais rigoroso do que o artigo 20, §1º, “d”, da Lei 8.213/91. Provar nexo causal é ligeiramente diferente de demonstrar contato direto ou exposição à doença.

Segundo o Ministro Alexandre de Moraes, “o artigo 29, ao prever que casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal, ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco”. Depreende-se da argumentação do Ministro que a exposição ao risco seria suficiente para caracterizar a natureza ocupacional da moléstia. A tese parece coadunar-se com a defendida no texto.

Assim, permanece aberta a possibilidade de se realizar o juízo de probabilidade acima defendido. Não é correto dizer, contudo, que o STF decidiu que a COVID-19 será, em todo caso, doença ocupacional. Na maior parte dos casos, será necessário um esforço argumentativo e probatório por parte do empregado, a fim de demonstrar o contato com a doença em condições prováveis de contaminação.

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