A Desconsideração da Personalidade Jurídica na Esfera Administrativa

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Neste texto, vamos analisar um aspecto específico da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. O questionamento que pretendemos responder é: pode a administração pública desconsiderar a personalidade jurídica e responsabilizar os sócios, independentemente de pronunciamento judicial?

Pois bem!

Já é conhecida a evolução do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. O dogma da separação patrimonial, estabelecido no art. 20 do Código Beviláqua, foi paulatinamente dando espaço à ideia de que, naquelas situações em que a pessoa jurídica fosse utilizada indevidamente, seria admissível que o Poder Judiciário afastasse “o manto corporativo” e atingisse os seus sócios.

A partir dos esforços teóricos de Rubens Requião, foi se consolidando a teoria da desconsideração, posteriormente positivada pelo Código de Defesa do Consumidor e por vários outros diplomas legais, tais como a Lei 8.884/1994, hoje já revogada, a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), o Código Civil (Lei 10.406/2002), a Lei de Defesa da Concorrência (12.529/2011) e, mais recentemente, a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013).

Se, por um lado, a teoria da desconsideração foi admitida muito rapidamente, é certo que essa admissão também trouxe consigo uma série de problemas, dos quais se destaca, especialmente, a sua aplicação indiscriminada.

De fato, ao entender-se que a pessoa jurídica poderia ser desconsiderada e os seus sócios poderiam ser pessoalmente responsabilizados sempre que não houvesse patrimônio suficiente para pagar as dívidas da sociedade, independentemente da demonstração da fraude, do abuso ou de confusão patrimonial, aumentou-se exponencialmente a insegurança jurídica, notadamente no direito do trabalho e no direito do consumidor.

Em Busca de Segurança Jurídica

Os equívocos e exageros na aplicação da teoria da desconsideração exigiram uma resposta por parte do legislador, que tentou, por meio do Código de Processo Civil de 2015, da Reforma Trabalhista e da Lei de Liberdade Econômica, restringir o uso desordenado do instituto.

O Código de Processo Civil disciplinou o procedimento que deveria ser seguido para que, em juízo, se procedesse à desconsideração. Garantiu-se, assim, o exercício da ampla defesa e do contraditório, trazendo mais segurança jurídica.

A Reforma Trabalhista, também com o propósito de ampliar a segurança jurídica, determinou expressamente que a desconsideração no âmbito da Justiça do Trabalho deveria seguir o incidente previsto no diploma processual civil.

Já a Lei de Liberdade Econômica, editada com o objetivo de tornar o ambiente legal brasileiro menos hostil à iniciativa privada, deu uma nova roupagem ao instituto da desconsideração: reinseriu-se no ordenamento jurídico a regra que assegurava a segregação patrimonial da pessoa jurídica, por meio do art. 49-A do Código Civil, e inseriu-se parâmetros hermenêuticos, que devem orientar o magistrado na interpretação das hipóteses que ensejam a desconsideração, dando-se nova redação ao art. 50 do Código Civil.

Se essas mudanças irão ou não surtir efeito, apenas o tempo dirá. É necessário dar tempo para que as instituições assimilem as modificações legislativas e as incorporem.

No entanto, engana-se quem acha que os principais problemas decorrentes da teoria da desconsideração já estão superados. Ao revés, novas discussões estão sempre surgindo. E uma dessas discussões tem o potencial de ampliar significativamente a esfera de incidência da disregard theory.

A Desconsideração Pela Administração Pública

Discute-se, cada vez com mais intensidade, a possibilidade de se desconsiderar a personalidade jurídica e responsabilizar os sócios na esfera administrativa, antes mesmo de iniciado qualquer procedimento judicial.

Quando se trata da desconsideração no âmbito do combate à corrupção, parece que a Lei 12.846/2013 a admite, muito embora esse entendimento decorra mais da estrutura da lei do que da redação do dispositivo legal.

Eu me explico: a Lei Anticorrupção inseriu a desconsideração da personalidade jurídica no seu Capítulo IV, que trata do processo administrativo de responsabilização. É o seu art. 14 que prevê tal possibilidade:

Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

Já a responsabilização judicial, na Lei Anticorrupção, é tratada apenas a partir do art. 18, o que deixa muito clara a intenção de inserir-se a desconsideração ainda na esfera administrativa.

Não é demais lembrar que se analisarmos a desconsideração na esfera administrativa pela ótica da integridade na administração pública, não há dúvidas de que esse procedimento se justifica. Afinal, se comprovado que os dirigentes da sociedade utilizavam intencionalmente a pessoa jurídica para viabilizar o pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos, por exemplo, organizando uma estrutura sistematicamente voltada para fraudar licitações, não há qualquer empecilho ético que desautorize a extensão dos efeitos da decisão administrativa aos dirigentes envolvidos em tais atos.

Também é importante deixar claro que a desconsideração realizada pela Administração Pública não impede nem o sócio nem a sociedade de discutirem, posteriormente, perante o Poder Judiciário, o acerto da decisão administrativa. Mas a simples análise da lei já autoriza esse procedimento em uma etapa “pré-processual”, por assim dizer.

A desconsideração administrativa sem previsão legal

Por fim, existe ainda um outro aspecto da questão: Pode a administração pública desconsiderar a personalidade jurídica fora das hipóteses previstas na lei anticorrupção? Ou a desconsideração depende de prévia decisão judicial, autorizando a responsabilização pessoal dos sócios?

O Tribunal de Contas da União tem entendido viável a desconsideração administrativa da personalidade jurídica quando considera ter havido fraude na licitação, incluindo os sócios como pessoalmente responsáveis pelos ilícitos apurados e mesmo outras pessoas jurídicas que eles vierem a constituir.

Essa discussão está parada no Supremo Tribunal Federal desde 2013, quando o Ministro Celso de Mello concedeu liminar em Mandado de Segurança, suspendendo os efeitos da desconsideração realizada pelo Tribunal de Contas da União (MS 36.989 DF).

De um lado, defende-se a reserva da jurisdição, sustentando-se que apenas o Poder Judiciário poderia afastar a personalidade jurídica, para evitar eventuais abusos que poderiam ser cometidos na seara administrativa. Também se alega que as sanções não podem ultrapassar a dimensão estritamente pessoal do infrator, por expressa disposição constitucional.

De outro lado, defende-se que a indisponibilidade dos interesses públicos e o princípio da moralidade administrativa exigiriam que tanto a pessoa jurídica quanto o sócio deveriam ser pessoalmente responsabilizados. E a autoexecutoriedade afastaria a necessidade do procedimento judicial.

É plausível a alegação de que a desconsideração, na esfera administrativa, pode levar a uma série de abusos? Que não é possível assegurar-se o contraditório e a ampla defesa se o mesmo órgão que acusa também é o responsável pelo julgamento?

Sim, é uma alegação plausível. Mas não podemos nos esquecer que essa é a regra sempre que se trata de procedimentos administrativos. Podemos tomar, por exemplo, uma autuação da fiscalização do trabalho. Nesse caso, o mesmo órgão que autua é que analisará os argumentos da defesa, podendo acatá-la ou não.

Além disso, como já se disse, nada impede que o Poder Judiciário analise a decisão proferida pela Administração Pública, sendo livre para verificar se os requisitos legais que ensejam a desconsideração estavam presentes. O simples fato do TCU, por exemplo, ter admitido a participação fraudulenta dos sócios e, com base em tal fato, desconsiderar a personalidade jurídica, não vinculará o magistrado.

A opção pela prudência

De todo modo, parece prudente, nesse caso, ser cauteloso e decidir a situação em favor da boa-fé. A personificação é um elemento relevante na estrutura do direito empresarial e consubstancia um incentivo significativo para o exercício da atividade econômica.

Então, mostra-se imprudente fragilizar o instituto a partir de uma interpretação principiológica, que não raro se mostra vaga, imprecisa e subjetiva.

A lei já traz inúmeras hipóteses nas quais a desconsideração poderá ser determinada pelo magistrado: relações de trabalho, de consumo, ambientais, penais, concorrenciais. Em todos esses casos já existe a previsão específica, além da previsão genérica contida no Código Civil, que viabiliza a desconsideração nas demais hipóteses.

Permitir a desconsideração ainda na esfera administrativa, em toda e qualquer hipótese, esvaziaria de conteúdo esses dispositivos legais. A regra – que exige a participação do Poder Judiciário, por meio da apreciação do incidente trazido pelo Código de Processo Civil – acabaria por tornar-se a exceção.

Por esse motivo, entendemos que a desconsideração da personalidade jurídica deve se dar em caráter excepcional, sempre se observando os parâmetros legais. Entretanto, admite-se a desconsideração na esfera administrativa, mas apenas naqueles casos em que a lei expressamente autoriza tal procedimento, como ocorre com a Lei Anticorrupção.

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