Os países em geral têm aumentado suas despesas por conta da crise causada pela pandemia do novo coronavírus. Coube ao poder público amparar a população atingida por esse cenário crítico.
A crise levou diversas pessoas a perderem seus empregos e ao fechamento de diversas empresas em países ao redor do mundo e os governos buscaram de diferentes maneiras apoiar a população mais vulnerável e as empresas em dificuldade. No Brasil não foi diferente.
Antes da pandemia o governo vinha realizando uma série de medidas com o objetivo de melhorar as contas públicas e reduzir o déficit fiscal. Dentre as medidas, destacam-se a adoção do teto dos gastos públicos, a qual passou a valer em 2017 e a reforma da previdência a qual passou a vigorar este ano.
Outras medidas, ainda no papel, também merecem destaque como a reforma administrativa, por exemplo, a qual se mostra extremamente importante para nossa retomada e defendo em outro texto dessa coluna.
Porém, é fato que esse cenário já não é o mesmo. Não bastasse a queda da arrecadação por conta do fechamento das empresas, houve uma ampliação dos gastos diante da urgência exigida elas áreas de saúde e economia, abandonando temporariamente o compromisso com o ajuste fiscal.
Considerando o auxílio emergencial, os repasses a área de saúde, os programas de crédito e o apoio aos estados e municípios, o governo havia previsto até 23 de junho gastar mais de R$ 400 bilhões no combate à pandemia (sendo que nem todo o montante ainda foi executado).
Isso só foi possível graças ao reconhecimento de calamidade pública e a aprovação do chamado orçamento de guerra, possibilitando à União elevar suas despesas, aumentar o endividamento e descumprir metas e regras fiscais.
Esse aumento das despesas tem um impacto considerável nas contas públicas. A diferença entre as despesas e a arrecadação das contas do governo central (Tesouro, Banco Central e Previdência Social) no mês de maio foi de R$ 126,6 bilhões.
Para se ter uma ideia, a equipe econômica tinha como meta, antes da pandemia, ter um déficit de R$ 124,1 bilhões ao longo de todo o ano de 20201. Fica mais do que comprovado dessa forma a grandeza do aumento de gastos que a crise sanitária ocasionou, apresentando um déficit primário recorde. Com esse aumento dos gastos, o governo se vê obrigado a tomar empréstimos e se endividar ainda mais.
As projeções do IPEA
O IPEA calculou que a Dívida Bruta do Governo Geral1 – que contabiliza governo federal e os governos estaduais e municipais, e exclui o Banco Central e as empresas estatais – deve subir para 93,7% do PIB (Produto Interno Bruto) até o final de 2020. Isso representa um aumento de quase 18 pontos percentuais em relação ao final de 2019 (75,8%), mostrando o significativo impacto da pandemia.
A relação dívida/PIB é sempre utilizada para se avaliar a saúde das finanças públicas uma vez que ela compara a magnitude de tudo o que o país deve com o quanto ele consegue produzir de riqueza durante um determinado período, geralmente por ano.
O IPEA prevê uma retração da economia de 6% em 2020, porém o fato importante aqui é que quanto maior a retração da economia, maior a relação dívida/PIB, uma vez que este último é o denominador da operação.
Uma vez que a razão dívida/PIB atinja 93,7% em 2020, o Ipea projeta a evolução da dívida nos anos seguintes por meio de dois cenários: um de referência e outro chamado de “transformador”.
O primeiro cenário considera que o Brasil retome o ritmo moderado de crescimento observado antes da pandemia e o segundo considera um quadro em que o PIB cresça em um ritmo mais acelerado.
Isso seria possível se fossem avançadas medidas voltadas a melhora do ambiente de negócios, aumento da produtividade, ao aumento do nível de investimento e à maior eficiência do setor público.
Além disso, as projeções em ambos cenários partem de duas hipóteses, sendo a primeira de que a regra do teto de gastos será cumprida e a segunda de que o setor privado compreenda os esforços do governo em manter a “disciplina fiscal” e entenda que a dívida pública é sustentável no longo prazo. O setor privado, portanto, tomaria decisões de investimento a partir dessa percepção positiva.
O cenário de referência mostra estabilização em mais de 100%, já o cenário transformador mostra queda considerável a partir de 2022. De fato, deve se destacar que as hipóteses usadas pelo IPEA são arriscadas, tanto por não haver garantias de que o teto de gastos será cumprido, sendo imprescindível que sejam feitas reformas ao longo dos anos seguintes para que os gastos públicos sejam contidos.
É claro que a diferença pode ser ainda maior caso as despesas com a pandemia sejam estendidas por muito mais tempo que o inicialmente previsto. A prorrogação do auxílio emergencial, por mais dois meses, por exemplo, adicionou pouco mais de R$ 100 bilhões ao total que o governo irá usar para lidar com a crise.
As projeções do Tesouro Nacional
Outro órgão que divulgou suas projeções foi o Tesouro Nacional2. A expectativa é que a dívida bruta do governo geral (DBGG) alcance 98,2% do PIB ao final de 2020, um aumento de 22,4% do PIB em relação ao encerramento de 2019 (75,8%).
Já nos anos seguintes, esta ficaria praticamente estável, alcançando 98,6% do PIB em 2024 e, em seguida, entraria em trajetória decrescente, encerrando 2029 em 92,2% do PIB.
Essa relativa estabilidade da dívida/PIB entre 2021 e 2024, mesmo diante de déficits primários significativos, se explicaria pela expectativa de taxas de juros reais baixas e recuperação do crescimento real do PIB.
Como se vê, as projeções sugerem que há uma curta janela de tempo favorável à dinâmica do endividamento, dentro da qual se pressupõe avanços no ajuste fiscal. Sem isso, esse cenário pode não se concretizar, com riscos relevantes para toda a trajetória.
Por fim, o relatório estima qual seria o esforço fiscal requerido para trazer a dívida/PIB para níveis equivalentes ao observado antes da crise. Com o crescimento da dívida/PIB em 2020, alcançando 98,2% no cenário base pós-COVID, o primário médio requerido para encerrar 2029 no patamar do final de 2019 passaria a ser de 1,73% do PIB no horizonte 2021-2029 (em vez de 0,26% do PIB, como calculado no pré-crise).
Isso exigiria um incremento médio de 1,76% do PIB na trajetória de resultado primário do cenário base atual, de forma a gerar superávits superiores a 2,0% do PIB a partir de 2026.
As projeções do FMI
Conforme mencionado, não é só o Brasil que sofreu com um aumento do endividamento, sendo assim, o FMI também fez uma série de projeções sobre a relação dívida/PIB em diversos países do mundo.
Segundo suas projeções divulgadas no dia 24 de junho3 o Brasil deverá encerrar 2020 com uma dívida bruta maior que o PIB, em 102,03%, sendo este nível similar a média mundial, porém superior à das economias emergentes. Cabe destacar que o FMI prevê uma queda do PIB em torno de 9,1%.
Destaca-se que os dados da dívida brasileira em 2018 e 2019 aparece mais alta nos números do FMI na comparação com os dados do Banco Central (usados pelo IPEA) por conta de uma diferença metodológica.
A continuidade das reformas
A relação dívida/PIB é normalmente utilizada para avaliar as finanças públicas de determinado país, todavia não é somente a diferença que é importante, mas sim a trajetória e a sustentabilidade da comparação, conforme percebida pelos diferentes agentes da economia.
Caso haja um crescimento da dívida pública do país sem ocorrer qualquer previsão de retorno para uma trajetória sustentável, haverá uma percepção de risco maior pelo mercado e, consequentemente, ocorrerá um aumento da taxa de juros demandada para emprestar (por meio de títulos públicos) ao governo.
Sendo assim, quando maior for este risco percebido, maior será o retorno a ser exigido, fazendo com que o custo de se obter novos empréstimos e rolar a dívida pública existente se torne cada vez maior. Ou seja, caso a dívida dê sinais de se tornar algo insustentável, isso poderá acarretar um endividamento descontrolado no futuro.
Em 2020, o aumento da dívida se explica, em parte, pelas medidas de cunho fiscal que aumentam o déficit primário e, em parte, pelos efeitos da crise no cenário macroeconômico, principalmente no PIB. Essa mudança no patamar de endividamento e no quadro fiscal em 2020 tem reflexos que persistem ao longo de toda a trajetória da dívida no médio prazo.
A combinação de choques simultâneos no resultado primário, nos juros e no crescimento econômico teria grande repercussão na trajetória da dívida/PIB. Choques negativos nessas variáveis podem colocar a dívida em trajetórias de alto risco.
De fato, é plausível que um choque adverso em uma dessas variáveis venha combinado de impactos negativos nas outras. Isto é, um cenário com déficit primário mais alto tende a ser acompanhado de maiores taxas de juros reais e menor crescimento do PIB.
Portanto, patamares mais baixos da dívida/PIB no médio prazo, passam necessariamente pela continuidade de reformas que favoreçam o ambiente de negócios e um maior crescimento do PIB, bem como pelo processo de consolidação fiscal.
É evidente a necessidade de se seguir com reformas que favoreçam o ajuste fiscal e o crescimento sustentado. Isto contribuiria duplamente para uma melhor dinâmica da dívida: mais crescimento e condições de manter um patamar de juros mais baixos e inflação sob controle.
O coronavírus gerou um grande debate com relação a atenção que deveria ser dada à dívida pública na crise. De fato, é inegável que deva ocorrer um aumento dos gastos neste período, todavia esses gastos devem ser realizados com cautela e com critérios bem definidos sob o risco de perder controle sobre a trajetória do endividamento no país.
1. IPEA. Carta de Conjuntura. Nº 47, 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2020/06/visao-geral-da-conjuntura-7/
2. TESOURO NACIONAL. Relatório de Projeções da Dívida Pública. Nº2, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_IEhmE_FX9w&t=527s
3. FMI. A Crisis Like No Other, An Uncertain Recovery. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/06/24/WEOUpdateJune2020