Muitos trabalhadores sofrem diariamente com o excesso de jornada de trabalho. Em algumas atividades específicas, para preservação do emprego, ainda mais neste período de pandemia, o obreiro se sujeita a trabalhar 11 (onze), 12 (doze), até mesmo 14 (catorze) horas, privando-se do convívio com seus familiares e de projetos da vida pessoal (lazer, estudo, etc.), que já se encontram limitados diante do isolamento social.
Além disso, a premissa de que vivemos em período de incertezas, com aumento de desemprego, não justifica abusos, assédio moral individual ou coletivo, tendo o Ministério Público do Trabalho atuado de forma incisiva diante de inúmeras denúncias espalhadas pelo Brasil. [1][2]
Com efeito, difícil é a tolerância com o cônjuge/convivente que “leva” trabalho para casa, ou que no regime de home office, somente trabalha com o receio do desemprego, como se a função laboral fosse tudo que lhe resta, como exemplo, os que suportam a nociva jornada de prontidão – aguardando o comando de trabalho por aparelhos móveis e outros dispositivos tecnológicos, excedendo suas forças físicas e mentais (com impacto direto na sua saúde).
Ademais, qual a finalidade de tanta dedicação ao trabalho concomitante ao prejuízo da harmonia familiar? Os familiares podem estar “distantes” mesmo que fisicamente próximos. O lucro do empregador vale mais que a boa convivência familiar? Tal situação tem sido cotidianamente exposta na Justiça do Trabalho cujas repercussões merecem atenção, vez que a submissão à jornada excessiva de trabalho pode decorrer da tentativa de salvaguardar o emprego, em razão alto volume de desempregados pelo País: mais de 13 milhões de desempregados.[3]
Em regra, a CLT estabelece que a jornada de trabalho não excederá 8 (oito) horas diárias (art. 58, caput), podendo ser prorrogada por mais 2 (duas) horas (art. 59, CLT) por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, além de regras inseguras por edições de Medidas Provisórias que não merecem o gasto de tempo de registrar neste artigo (Medida Provisória equivale a “gasto de tinta” com prejuízo para o hipossuficiente durante o período de sua edição). Em algumas atividades específicas, vislumbram-se formas de escalas ou jornadas diferenciadas (Ex: 12 x 36, vide Súmula 444 do TST; Turno ininterrupto de revezamento, conforme OJ’s 360, 396, entre outras atividades), previstas em lei ou ajustadas exclusivamente mediante acordo coletivo de trabalho ou convenção coletiva de trabalho.
A repercussão jurídica principal do excesso de jornada laboral reconhecida pela Justiça do Trabalho trata-se do pagamento (condenação da Reclamada) de horas extras com reflexos legais. No entanto, basta o reconhecimento, tão somente, do direito às horas extras (e reflexos) como efeito jurídico? Não comportaria ao trabalhador nenhuma indenização por trabalhar em excesso de jornada? Eis então que o Direito do Trabalho moderno configura uma modalidade de indenização específica para essa situação penosa, reconhecida como indenização por dano existencial1.
E como a Justiça do Trabalho tem se posicionado em face do dano existencial?
Em decisão de processo 2ª TURMA da TRT-PR, (Processo 00486-2015-017-09-00-3-ACO-04130-2017), o desembargador Cássio Colombo Filho destacou em seu voto que reconheceu a existência de dano existencial a um trabalhador rural: “A exigência habitual do elastecimento da jornada de trabalho ofende a honra subjetiva do reclamante. Assim, diante do evidente menoscabo da dignidade do trabalhador, que certamente teve sofrimento psicológico, resta caracterizado o dano moral, que merece compensação.”
No mesmo sentido, o TST, em decisão do Recurso de Revista 1338-76.2015.5.17.0101, julgado em 22 de fevereiro de 2017, ratificou o entendimento de que a jornada exaustiva configura dano existencial. Em relevante voto, o ministro José Roberto Freire Pimenta pontuou que: “Assim, fica comprovada a reprovável conduta patronal, com a prática de abuso do poder diretivo ao exigir jornadas exaustivas de trabalho e restrição dos direitos ao descanso e lazer, com óbvias consequências à saúde da obreira, que se via na contingência de ter que produzir sem poder refazer as energias dispendidas, resultando em ofensa aos direitos humanos fundamentais, atingindo-se a dignidade, a liberdade e o patrimônio moral da demandante, o que acarreta a obrigação legal de reparar.”
Da mesma forma, seguem recentes decisões (de agosto de 2020):
CARACTERIZAÇÃO. O dano existencial se afere pela impossibilidade de execução de atividades paralelas ao trabalho que asseguram ao trabalhador o descanso, lazer e a convivência familiar e social. Uma vez obrigado a cumprir jornada de mais de 15 horas, em períodos de 15X1, é evidente o prejuízo ao projeto de vida e às relações sociais e familiares do autor. (TRT 3ª R.; ROT 0010439-31.2018.5.03.0099; Segunda Turma; Rel. Des. Lucas Vanucci Lins; Julg. 07/08/2020; DEJTMG 12/08/2020; Pág. 652)
JORNADA EXAUSTIVA. Indenização por danos existenciais. A jornada de trabalho excessiva, ao privar o trabalhador do convívio familiar e social, compromete o direito ao lazer e ao descanso e, por conseguinte, a saúde psicofísica do trabalhador, configurando dano existencial passível de reparação. (TRT 3ª R.; ROT 0010350-64.2017.5.03.0027; Oitava Turma; Rel. Des. Márcio Flávio Salem Vidigal; Julg. 07/08/2020; DEJTMG 10/08/2020; Pág. 1046)
MOTORISTA PROFISSIONAL. JORNADA DE TRABALHO EXAUSTIVA. DIREITO AO LAZER. DANO EXISTENCIAL. O DIREITO AO TRABALHO TRANSCENDE O CAMPO DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS LABORAIS. CONSISTE NUMA FORMA DE REALIZAÇÃO MATERIAL E ESPIRITUAL DO SER HUMANO. Refere-se à dignidade do trabalhador, sujeito do qual emana a força do trabalho, e a valores indisponíveis, em especial aqueles pertencentes à esfera da personalidade, dado que funciona como identificação do indivíduo na sociedade. Assim, é justo que o obreiro tenha assegurado o exercício do direito ao lazer, como necessidade biológica, dispondo de tempo livre para o repouso de seu organismo, e como meio à convivência humana, no seio de sua família e na inserção na comunidade em que vive. A jornada de trabalho excessiva, ao tolher o trabalhador do convívio familiar e social, viola o direito ao lazer e ao descanso e, por consequência, o princípio-fundamento da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CR/88) caracterizando dano existencial, portanto, passível de reparação. (TRT 3ª R.; ROT 0010657-45.2018.5.03.0039; Primeira Turma; Relª Desª Adriana Campos de Souza; Julg. 30/07/2020; DEJTMG 31/07/2020; Pág. 383)
Por outro lado, os Tribunais têm rechaçado a aplicação da tese com base apenas no fundamento da prestação habitual de horas extras:
JORNADA EXCESSIVA. DANOS MORAIS EXISTENCIAIS. O dano moral existencial constitui-se em espécie de dano extrapatrimonial, o qual atinge os projetos de vida, o convívio familiar, o lazer, a cultura, dentre outros que compõem a personalidade do ser humano. Todavia, a mera prestação habitual de horas extras não enseja seu reconhecimento, conforme o teor da Tese Jurídica Prevalecente 2, aprovada por esta Corte por meio da Resolução Administrativa nº 15/2016. (TRT 4ª R.; ROT 0020442-97.2018.5.04.0202; Segunda Turma; Rel. Des. Carlos Henrique Selbach; Julg. 05/08/2020; DEJTRS 17/08/2020)
NECESSIDADE DE PROVA DE SUA CONFIGURAÇÃO. Para declarar-se a ocorrência de dano existencial é necessária a prova de sua configuração. No caso, não houve, na instrução processual, demonstração ou indício de que a jornada do autor tenha comprometido suas relações sociais ou seu projeto de vida, fato constitutivo do direito do reclamante. O que não se pode admitir é que, comprovada a prestação em horas extraordinárias, extraia-se automaticamente a ilação de que as relações sociais do trabalhador foram prejudicadas. Não comprovado o dano, o indeferimento do pedido de pagamento de indenização é a medida que se impõe. (TRT 18ª R.; ROT 0011766-48.2019.5.18.0005; Segunda Turma; Rel. Des. Eugênio José Cesário Rosa; Julg. 13/08/2020; DJEGO 14/08/2020; Pág. 349)
DANO MORAL. DANO EXISTENCIAL. O reconhecimento do dano existencial exige mais que a prática de jornadas de trabalho excessivas, sendo necessário haver razoável demonstração dos prejuízos sofridos pelo empregado em relação a sua vida pessoal. (TRT 4ª R.; ROT 0020407-56.2019.5.04.0541; Sexta Turma; Relª Desª Beatriz Renck; Julg. 21/10/2020; DEJTRS 28/10/2020)
No mais, os advogados que militam na área trabalhista devem indicar ao Reclamante todos os riscos e benefícios da ação considerando os efeitos da Reforma Trabalhista, não invocando o dano existencial, quando o caso comporta a tese apenas de ameaça de desemprego/desligamento, que pode resultar em aumento de jornada, no entanto, não se confunde com o dano existencial. Vejamos decisões específicas acerca da ameaça de desemprego que se trata assédio moral:
ASSÉDIO MORAL. CONFIGURAÇÃO. ABUSO DO PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR NA COBRANÇA DE METAS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. Atinge a esfera íntima e psíquica do trabalhador, a ameaça de desemprego desferida pelo empregador na cobrança do atingimento de metas de lucratividade. Aplicação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Apelo obreiro parcialmente provido. (TRT 1ª R.; RO 0001389-49.2010.5.01.0282; Décima Turma; Relª Desª Rosana Salim Villela Travesedo; DORJ 15/09/2014)
DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL. ATIVIDADES NÃO INERENTES. HORAS SUPLEMENTARES. O tratamento despótico caracteriza tirania patronal, incompatível com a dignidade da pessoa humana e com a valorização do trabalho. O assédio moral se configura pela utilização tática de ataques repetitivos sobre a figura de outrem, expondo o empregado a situações humilhantes e constrangedoras, na busca dos objetivos empresariais que incluem um lucro cada vez maior. O empregado, diante da velada ameaça do desemprego, se vê obrigado a atingir as metas impostas e agir contra sua consciência. O assédio moral envolve danos morais e a indenização há de ser proporcional à gravidade, resultante dos danos sofridos, devendo-se considerar as condições econômicas do reclamante e do reclamado, para o arbitramento do valor, bem como ter por objetivo coibir o culpado a não repetir o ato ou obrigá-lo a adotar medidas para que o mesmo tipo de dano não vitime a outrem. (TRT 3ª R.; RO 860/2010-061-03-00.7; Terceira Turma; Rel. Des. Bolívar Viegas Peixoto; DJEMG 30/05/2011)
Portanto, o trabalhador privado de seu convívio familiar deve estar atento e buscar na Justiça seu justo direito de ser reparado a título de dano existencial quando houver submissão habitual à jornada excessiva, comprometendo seu projeto de vida pessoal e familiar (nos termos dos artigos 6º e 226 da CF), devendo ser fundamentada a exordial com as cautelas necessárias para não confundir os institutos jurídicos supracitados, e ensejar em riscos de derrotas perante a Justiça do Trabalho (pedido genérico sem provas equivale à perda do tempo útil e frustração).
Vitor Ferreira de Campos é Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e graduado em Direito pela mesma instituição. Coordenador de Área em Ciências Sociais Aplicadas na Cogna Educação, e advogado sócio fundador do escritório “Vitor Ferreira de Campos – Sociedade Individual de Advocacia”, em Londrina, Paraná. Trabalha nas áreas de Planejamento Empresarial Familiar, Direito de Família, Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. Colunista do Portal F5 Jurídico.
[1] http://www.sindmetal.org.br/11-das-denuncias-feitas-ao-mpt-durante-a-pandemia-sao-de-assedio-moral-e-abusos/
[2] https://www.sintrajud.org.br/mpt-sp-recebe-quase-200-denuncias-de-assedio-moral-durante-a-pandemia/
[3] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/30/desemprego-no-brasil-sobe-para-144percent-em-agosto-diz-ibge.ghtml