Danos espirituais: uma nova dimensão dos danos extrapatrimoniais

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O direito da responsabilidade civil tem passado por inúmeras alterações: ele já abandonou a culpa como o principal elemento na imputação da obrigação de indenizar; já reconheceu que a perda de uma oportunidade enseja a reparação civil; já discute se o pagamento de uma elevada indenização punitiva seria compatível com a estrutura de nosso direito privado; já considera que a prevenção também é considerada uma das finalidades da responsabilidade civil e, por fim, já ampliou significativamente os danos que são passíveis de reparação patrimonial.

E é justamente deste último aspecto que nós trataremos agora!

O desastre aéreo

Em 2006, um Boing 737 da Gol colidiu com uma aeronave Legacy nos céus do Mato Grosso. O acidente teve ampla repercussão. Foram mais de 150 mortos; os pilotos do jato foram condenados a três anos de prisão, mas nunca se apresentaram para cumprir a pena; ações indenizatórias correm até hoje para se fixar os valores que devem ser pagos aos familiares das vítimas e dezenas de acordos foram concluídos.

No entanto, de todos desdobramentos jurídicos desse trágico acidente, um não tem tido a atenção que merece: o pagamento de indenização aos índios Kayapó por danos espirituais.

Os destroços do avião da Gol caíram sobre uma área indígena de aproximadamente 1.000 Km2, tornando tal área interditada para os povos indígenas da comunidade Kayapó.

A cidade dos espíritos

A área, agora, é considerada sagrada, não podendo mais ser frequentada, porque se tornou habitada pelos espíritos dos mortos.

A cidade dos espíritos, como vem sendo denominada a região interditada, é imprópria para o uso pela geração atual e pelas gerações vindouras dos indígenas. Não se pode caçar, pescar ou retirar o mel. Não se pode nem mesmo circular pela área, especialmente ao anoitecer. E uma das 12 tribos da região, inclusive, teve que mudar de lugar.

Foi somente em 2010 que os Kayapó, liderados pelo Cacique Raoni, se mobilizaram para pedir à Gol que os destroços fossem retirados de suas terras. Essa operação, no entanto, considerada difícil e dispendiosa, não mudaria o status das áreas atingidas; continuaria sendo uma cidade dos mortos; continuaria sendo uma região interditada.

Assim, a comunidade indígena e a empresa, com a intermediação do Ministério Público Federal, chegaram a um acordo: os destroços não seriam retirados, mas uma indenização de quatro milhões de reais seria paga aos indígenas, para compensar os danos materiais e os danos espirituais por eles sofridos.

Os danos espirituais

É justamente essa dimensão do dano extrapatrimonial que não vem sendo detidamente analisada pela comunidade jurídica.

Tradicionalmente, entendemos que a ofensa ao “patrimônio ideal”, aos bens de ordem moral, como a honra, a dignidade, a imagem, a reputação, ensejariam a reparação por danos extrapatrimoniais.

Um novo debate que se abre com a questão Kayapó é, justamente, a possibilidade de se entender que também os valores espirituais, a fé, a religiosidade, a crença, os cultos e rituais, compõem uma dimensão da experiência humana que merece proteção no campo da responsabilidade civil.

A profanação do sagrado, a destruição de objetos litúrgicos, a interdição à prática religiosa, dentre outros atos similares, pode sim ensejar a reparação por danos extrapatrimoniais. E não é desnecessário lembrar que a própria Constituição da República assegura expressamente a liberdade de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e liturgias.

Recentemente, anunciou-se que a Polícia Civil do Rio de Janeiro irá transferir para o Museu da República, no Catete, 523 peças que foram apreendidas entre 1889 e 1945, relacionadas à prática da Umbanda e do Candomblé.

Os objetos, que integram a Coleção da Magia Negra – e vamos convir que dificilmente poderia ser encontrado um nome pior – eram apreendidos nos terreiros religiosos como evidência da prática dos crimes de magia, espiritismo e sortilégio, tipificados pelo Código Penal de 1890.

A perseguição às religiões afro-brasileiras, que até hoje continua, como se vê com a constante denúncia de episódios de intolerância e violência religiosa, causa danos de ordem espiritual às vítimas, os quais certamente justificam a condenação dos ofensores ao pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais, considerando-se a dimensão espiritual.

Em síntese…

A espiritualidade e a religiosidade constituem um dos aspectos mais destacados da experiência humana e merecem tutela não apenas na esfera penal, mas também na esfera civil.

É possível considerar que a ofensa a esses valores enseja uma análise diferenciada na fixação do montante da indenização que será paga. Isso é, além dos demais atributos da personalidade, também a espiritualidade deverá ser considerada para se arbitrar o valor que será pago a título de danos extrapatrimoniais.

Para concluirmos, vale uma última observação: ao admitir-se a dimensão espiritual como um elemento a ser considerado para fins de reparação pecuniária, deve-se atentar para um possível conflito com a liberdade de expressão. Seria possível estabelecer-se a proteção ao sagrado sem vedar-se as críticas e sátiras religiosas?

Essa é outra questão, sobre a qual também deveremos nos debruçar…

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