De início, quando o casal decide constituir a entidade familiar pelo casamento ou pelo convívio em união estável [1] (é muito comum não formalizar por escritura pública a união estável) aplica-se o disposto do art. 1640, do Código Civil brasileiro:
Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.
Pelo regime de comunhão parcial de bens, o art. 1658 do Código Civil estabelece a comunicação dos bens adquiridos durante a constância do casamento/união estável, a saber:
Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
São excluídos de comunicação:
Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
I – os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II – os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;
III – as obrigações anteriores ao casamento;
IV – as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V – os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII – as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
Entretanto, estabelece o art. 1660, do CC/2002:
Art. 1.660. Entram na comunhão:
I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges;
II – os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior;
III – os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges;
IV – as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge;
V – os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.
E quando houver a abertura de empresa após o casamento e/ou convívio da união estável (para a união estável, com ausência da escolha de regime de bens por escritura pública)? Quais são os efeitos jurídicos? Neste caso, o cônjuge/convivente detém participação de 50% das cotas, dívidas e bens referentes à cota-parte do cônjuge na empresa constituída, com base no art. 1660, I, do Código Civil.
Para o casal que se encontra em plena harmonia, não há impedimento algum para o sucesso empresarial e familiar, além de que os lucros do empreendimento são compartilhados na vida conjugal, com aquisição de novos bens, manutenção do lar (parcial ou total), posto que ambos os cônjuges/convivente atuam em benefício da família (dever de mútua assistência).
E para o casal que pretende se divorciar ou dissolver a união estável, quando não há mais harmonia? Eis a grande batalha jurídica que se inicia na vida prática do Direito de Família: a partilha da participação do cônjuge/convivente na empresa.
Quando da ocorrência do Divórcio (ou Dissolução de União Estável), sem adentrar no debate acerca dos alimentos compensatórios, que já foram objeto de artigo específico[2], as partes, quando casadas/conviventes pelo regime de comunhão parcial de bens, precisam deliberar acerca da partilha das cotas sociais do cônjuge/convivente (lucros, dívidas e bens).
Caso seja uma firma individual, a jurisprudência é clara no sentido de que todo o acervo patrimonial e dívidas da empresa pertence ao casal. Vejamos recente decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Amazonas:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE PARTILHA DE BENS. EXCLUSÃO DE VEÍCULO ADQUIRIDO APÓS A DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. CABIMENTO. EXCLUSÃO DOS LUCROS. EMPRESA FIRMADA NA CONSTÂNCIA DA CONVIVÊNCIA. DIREITO À PARTILHA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I – É inviável a partilha de bem móvel adquirido após a dissolução da união estável entre as partes II – Restando incontroverso que a Empresa foi criada na vigência da união estável, revela-se manifesto o direito da ex-companheira à partilha dos lucros (e dívidas) do empreendimento. III – Apelação conhecida e parcialmente provida. (TJ-AM – AC: 06406990320178040001 AM 0640699-03.2017.8.04.0001, Relator: João de Jesus Abdala Simões, Data Data de Julgamento: 29/10/2019, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 29/10/2019).
Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça também tem decidido de forma favorável à partilha da empresa, independente da natureza jurídica da sociedade empresarial:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DIVÓRCIO. PARTILHA. AVALIAÇÃO. COTAS SOCIAIS. EMPRESA. ATIVIDADES ENCERRADAS. SEPARAÇÃO DE FATO. ADMINISTRAÇÃO EXCLUSIVA. JUROS. CORREÇÃO MONETÁRIA. CABIMENTO. PERDAS E DANOS. 1. Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Na forma do artigo 389 do Código Civil de 2002, incidem juros e correção monetária sobre a avaliação do conteúdo econômico de cotas sociais de empresa objeto de partilha em divórcio que, após a separação do então casal, sob a administração exclusiva de um dos ex-cônjuges, encerrou suas atividades comerciais. 3. Recurso Especial não provido. (STJ; REsp 1.689.220; Proc. 2017/0109438-1; RS; Terceira Turma; Rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva; Julg. 19/05/2020; DJE 27/05/2020)
Como bem destacado no voto do Relator, Min. Ricardo Villas Boas Cueva:
“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, condizente com a doutrina, é pacífica ao reconhecer a possibilidade de partilha, em ação de divórcio, da expressão econômica resultante de cotas empresariais que integraram o patrimônio comum construído na vigência do relacionamento outrora estabelecido entre as partes, independentemente da natureza da sociedade.
Nesse sentido: REsp nº 1.537.107/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/11/2016, DJe 25/11/2016, e REsp nº 1.531.288/RS, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 24/11/2015, DJe 17/12/2015.
A Terceira Turma, ao julgar o REsp nº 1.537.107/PR, teve a oportunidade de debater hipótese em que se partilhou a valorização decorrente da administração da empresa que, nos anos seguintes à separação do então casal, experimentou crescimento financeiro a ser dividido por força da reconhecida copropriedade das cotas, não podendo “o recorrente apartar a sua ex-cônjuge do sucesso da sociedade” (Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/11/2016, DJe 25/11/2016).”
No mais, para alguns casos de conflitos judiciais, em que o cônjuge/convivente que administra exclusivamente a empresa pode utilizar de “laranjas”, ou seja, realizar a abertura da empresa em nome de terceiros, o C.STJ já reconheceu a possibilidade da desconsideração da pessoa jurídica inversa, para a finalidade de apurar eventuais desvios, conforme decisão contida no julgamento do REsp n. 1.236.96-RS, sob a relatoria da Min. Nancy Andrighi, a saber:
“…No campo familiar, a desconsideração da personalidade jurídica, compatibilizando-se com a vedação ao abuso de direito, pelo cônjuge (ou companheiro) sócio que, com propósitos fraudatórios, vale-se da máscara societária para o fim de burlar direitos de seu par. Nessa medida, o que se pretende aqui, com a disregard doctrine, é afastar momentaneamente o manto fictício que separa os patrimônios do sócio e da sociedade para, levantando o “véu” da pessoa jurídica, buscar o patrimônio que, na realidade, pertence ao cônjuge (ou companheiro) lesado.
Pode-se vislumbrar situações, por exemplo, em que o cônjuge ou companheiro esvazia seu patrimônio pessoal, enquanto pessoa natural, e o integraliza na pessoa jurídica, de modo a afastá-lo da partilha. Também é possível que o cônjuge ou companheiro, às vésperas de seu divórcio ou dissolução da união estável, efetive sua retirada aparente da sociedade da qual é sócio, transferindo sua participação para outro membro da empresa ou para terceiro, também com o objetivo de fraudar a partilha.
Nessa ordem de ideias, a desconsideração inversa da personalidade jurídica poderá ocorrer sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva”.
Em decisão de 28/11/2019, do E. TJSC (AI: 40215862120198240000) o Relator Desembargador Jorge Luis Costa Bebe, afirmou em seu voto:
“…Evidentemente que a situação não comporta a solução buscada pela ré, mesmo porque, enquanto sócia das pessoas jurídicas, responde também pelo seu eventual passivo, não se cogitando, pois, que a questão se exaura, pura e simplesmente, no reconhecimento da sua titularidade sobre metade dos bens registrados em nome das empresas, como requer. O reconhecimento da sua titularidade sobre 50% das cotas sociais, outrossim, não depende de postulação nesse sentido (daí por que não há cogitar eventual nulidade da decisão por julgamento ultra petita), eis que a propriedade comum decorre do regime de bens que orienta a relação convivencial estabelecida (comunhão parcial).”
Ainda, registra-se que muitas pessoas desconhecem os efeitos do regime de comunhão parcial de bens que se aplicam automaticamente na união estável, desenvolvendo atividade empresarial sem nenhum respaldo jurídico ou qualquer preocupação com seus efeitos jurídicos.
Portanto, havendo uma empresa em comum, no regime de comunhão parcial de bens, esta deverá ser partilhada no divórcio ou dissolução da união estável, o que na prática, muitas vezes, reflete em batalha judicial, perícias, e possíveis de anos de conflito judicial.
Por outro lado, para o casal que pretende a harmonia do casamento, sem o reflexo patrimonial na vida empresarial, sugere-se o debate amplo e a escolha do regime de bens que melhor se adequa ao sonho da vida comum. Para a união estável, o casal pode regularizar o registro de União Estável por intermédio da Escritura Pública, no Cartório de Notas (podendo optar pela separação convencional de bens conforme o art. 1687 do Código Civil[3]).
Com efeito, recomenda-se a procura de um profissional da área com a finalidade de subsidiar o casal de forma preventiva para o projeto da vida conjugal, vez que as lides podem causar altos custos e dissabores desnecessários para a vida pessoal/empresarial.
Vitor Ferreira de Campos é Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e graduado em Direito pela mesma instituição. Coordenador de Área em Ciências Sociais Aplicadas na Cogna Educação, e advogado sócio fundador do escritório “Vitor Ferreira de Campos – Sociedade Individual de Advocacia”, em Londrina, Paraná. Trabalha nas áreas de Planejamento Empresarial Familiar, Direito de Família, Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. Colunista do Portal F5 Jurídico.
[1]União estável não depende da convivência sob mesmo teto:
[2] https://f5juridico.com/dos-alimentos-compensatorios-pensao-alimenticia-ate-a-partilha-do-patrimonio-empresarial/
[3] PENHORA DE BENS. CASAMENTO COM SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. Estando provada a adoção do regime de casamento com separação total de bens, na forma do que dispõe o art. 1.687 do Código Civil, e inexistindo nos autos prova de que o cônjuge contribuiu para a constituição do patrimônio do casal, os bens de propriedade de um deles não se comunica com o do outro. (TRT da 4ª Região, Seção Especializada em Execução, 0020697-46.2014.5.04.0024 AP, em 06/02/2017, Desembargadora Cleusa Regina Halfen)