Falso Testemunho na Justiça do Trabalho

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O empregador detém o poder organizacional da atividade empresarial, corolário do direito de propriedade e da livre iniciativa. Com base nesse poder, é ele quem confecciona a documentação do contrato de trabalho. Pode acontecer, e isso é mais comum que o desejável, que os papéis e escritos não reflitam exatamente a realidade verificada na execução do contrato. E, em razão da subordinação a que está submetido, o empregado nem sempre se opõe a eventuais irregularidades, chegando até mesmo a assinar papéis sabidamente irregulares.

Ciente dessa dificuldade, a CLT prevê, no artigo 9º, serem nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.” Assim sendo, ainda que a documentação, assinada pelo empregado, demonstre certos fatos, é possível a desconstituição dos escritos quando demonstrada a fraude. Há falar, assim, no princípio da primazia da realidade sobre a forma.

Nesse cenário, ganha relevo a prova testemunhal, utilizada de modo abundante perante a Justiça do Trabalho. De fato, pode o trabalhador (e também o empregador) se valer de colegas ou de outras pessoas que presenciaram a execução do contrato, a fim de demonstrar a realidade sobre a qual deverá incidir o direito do trabalho. Em regra, cada parte poderá convidar até 3 testemunhas para prestar depoimento no processo. Esse número fica reduzido para 2, no caso de causas cujo valor não exceda 40 salários-mínimos (procedimento sumaríssimo).

Em contraponto à relevância e necessidade desse meio de prova, há a dificuldade no controle de sua idoneidade. Com efeito, é muito difícil saber o que se passa na mente humana. Assim, com exceção de algumas técnicas capazes de detectar casos mais evidentes, é possível que uma mentira, um exagero ou mesmo um engano passem despercebidos ao Magistrado. Isso pode implicar uma sentença não condizente com os fatos efetivamente ocorridos, o que pode levar uma sensação de injustiça à sociedade.

Como meio de estimular um depoimento compromissado, a legislação traz algumas consequências para o falso testemunho, as quais devem ser comunicadas às testemunhas antes de o juiz lhes tomar o compromisso legal. A principal e mais grave é a tipificação do crime de falso testemunho, previsto no artigo 342 do Código Penal:

Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Assim, verificando a possibilidade de falso testemunho, o Juiz do Trabalho determinará, na sentença, seja oficiado o Ministério Público Federal, competente para a ação penal no caso sob exame. Estende-se não haver a possibilidade de prisão em flagrante delito, porque a testemunha tem a oportunidade de se retratar até a sentença (§2º do art. 342 do Código Penal).

Além da possibilidade de prisão, a Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista) passou a prever o ilícito processual, penalizando-o especificamente. De fato, previu o artigo 793-D que, à testemunha que mentir, poderá ser aplicada a mesma pena prevista para o litigante de má-fé. Eis a norma:

Art. 793-D. Aplica-se a multa prevista no art. 793-C desta Consolidação à testemunha que intencionalmente alterar a verdade dos fatos ou omitir fatos essenciais ao julgamento da causa.

Por sua vez, o art. 793-C fixa que essa multa deverá ser superior a 1% e inferior a 10% do valor corrigido da causa em que se prestou o depoimento.

Não há falar em bis idem pela existência de multas nas esferas trabalhista e penal. Há a independência das instâncias e o bis in idem não se evidencia quando o mesmo fato ofende bens jurídicos de esferas distintas de proteção. No processo do trabalho, o interesse principal defendido é o da parte a quem o falso prejudicou, tanto que a multa é reversível a ela, segundo entendimento majoritário. No direito penal, o interesse defendido é o da sociedade, por ofensa a seus bens jurídicos mais relevantes.

Sob outro norte, discute-se muito o procedimento a ser adotado para a aplicação da multa à testemunha. A CLT não traz nenhuma previsão nesse sentido, de modo que há quem entenda que o Juiz não precisa cumprir nenhuma formalidade para aplicar a penalidade.

Por outro lado, em razão dos princípios do contraditório e da ampla defesa, há quem entenda que a Constituição exige a instauração de incidente para a apuração da falsidade. Foi a posição adotada pelo TST na Instrução Normativa 41/2018:

Art. 10, Parágrafo único: Após a colheita da prova oral, a aplicação de multa à testemunha dar-se-á na sentença e será precedida de instauração de incidente mediante o qual o juiz indicará o ponto ou os pontos controvertidos no depoimento, assegurados o contraditório, a defesa, com os meios a ela inerentes, além de possibilitar a retratação.

Neste trabalho, defende-se a inexigibilidade do incidente. Principalmente, defende-se a desnecessidade de que o juiz tome a iniciativa para oportunizar a retratação.

Com a devida vênia, entende-se que o colendo Tribunal excedeu seu poder regulamentar, trazendo exigência não prevista em lei, além de fixar posicionamento jurídico antes do necessário debate da questão nas instâncias ordinárias. Assim, salvo melhor juízo, a IN 41/2018 possui natureza jurídica de recomendação, cuja aplicação não é de observância obrigatória pelos juízos de primeira e de segunda instâncias.

O principal argumento para a inaplicabilidade do incidente é a efetividade do instituto do compromisso legal, previsto nos artigos 828 da CLT e 458, p.u., do CPC. De fato, a testemunha é cientificada, pelo Magistrado, de seu dever de dizer a verdade e das consequências do descumprimento. Essa formalidade, para que não seja inócua, não é compatível com um dever de o próprio Juiz, posteriormente, tomar a iniciativa de instaurar um incidente para que a testemunha, se quiser, retrate-se e escape de quaisquer punições.

Essa previsão estimula o depoimento descompromissado, facilitando a mentira em juízo. Com efeito, as testemunhas poderiam comparecer e dizer as falsidades que bem entendessem, sem consequências. A mentira, assim, teria duas consequências possíveis:

a) se o juiz não a descobrir, as testemunhas maliciosas conseguem o objetivo de influenciarem a decisão com informações não verídicas;

b) se, ao revés, o juiz descobrir, os falsários terão a oportunidade de se retratarem antes da sentença, elidindo a multa e o crime, escapando ilesos de sua tentativa frustrada.

Em outras palavras, o incidente anterior à aplicação da multa facilita o depoimento descompromissado, tornando absolutamente inócuo o compromisso legal tomado em audiência, prejudicando a higidez da prova e o devido processo legal. A retratação não pode ser considerada um direito da testemunha, a ser assegurado de modo irrestrito pelo magistrado. A retratação é um ônus da testemunha, a qual já descumpriu o dever de dizer a verdade. Se a retratação não foi por ela exercida espontaneamente, não faz sentido o juiz tomar a iniciativa nesse sentido.

Evidentemente, não se está aqui a dizer que toda testemunha mente em juízo. Contudo, a mera possibilidade de existir a mentira, de difícil detecção, exige meios que desestimulem a prática. Esses meios devem ser sérios e efetivos. O contraditório e a ampla defesa prévios não são absolutos, havendo casos em que eles podem ser postergados, excepcionalmente. Tendo em vista que, no caso, está em jogo o devido processo legal, a paridade de armas e, no fim das contas, a própria ideia de justiça, acredita-se que a aplicação da multa à testemunha é uma dessas situações que exigem a adoção de um contraditório diferido.

No caso, portanto, aplicada a multa em sentença à testemunha, ela deve ser intimada para apresentar recursos, inclusive embargos de declaração. Além disso, na execução da multa, que se dá nos próprios autos, poderá a testemunha se valer da ampla defesa a fim de desconstituir a penalidade. Lembrando que não há o óbice da coisa julgada material contra a testemunha¹, porque contra ela não houve ação. No processo penal, igualmente, poderá a testemunha se defender como quiser.

Outra possibilidade, se o contraditório prévio à aplicação da multa for tido como inafastável, é que se profira a sentença (para caracterizar o crime de falso testemunho) e, apenas posteriormente, abra-se um incidente para decidir sobre a aplicação da multa e ofício ao Ministério Público. Dessa forma, pelo menos, sem a possibilidade de retratação, haverá um efetivo prejuízo para a testemunha que mentiu e foi descoberta pelo juiz.

Pela possibilidade de contraditório diferido, cita-se o escólio do Exmo. Marco Antônio Santos, na obra CLT 2020 comparada e comentada pelos Magistrados do TRT da 2ª Região (Ltr, 2020, p.822):

Por óbvio, é assegurado à testemunha todos os meios de defesa e recursos com intuito de reverter a multa cominada, podendo manejar recurso ordinário, inclusive como jus postulandi, nos termos do art. 791 da CLT”.

Para finalizar, cumpre esclarecer que o Juiz somente deve aplicar a multa por falso testemunho quando a mentira for evidente. Se houver dúvida, divergência de depoimentos ou possibilidade de haver mero engano, próprio da falibilidade da memória humana, não se caracteriza claramente a má-fé, de modo que a multa não deve ser aplicada.

¹Bernardes, Felipe. Punição de testemunha por litigância de má-fé. Disponível em : https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pensando-direito/punicao-de-testemunha-por-litigancia-de-ma-fe-26072018 . Acesso em 25/6/2020.

 

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