O fato do príncipe e as rescisões contratuais decorrentes da COVID-19

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Por Hélder Fernandes Neves
Juiz do Trabalho

No atual cenário de crise de saúde pública, têm sido noticiados na imprensa casos de empresas que estão dispensando seus empregados sem o pagamento das indenizações a que fariam jus. Fazem-no sob o argumento de que caberia ao governo do Estado-membro ou mesmo do Município arcar com tais valores. Trata-se da tese do factum principis, ou fato do príncipe.

De fato, a CLT prevê, no artigo 486, que:

 “No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.”

De acordo com Gustavo Filipe Barbosa Garcia, para a configuração do fato do príncipe:

“é necessário que o evento seja inevitável e imprevisível, e o empregador não tenha concorrido para que se realize. Além disso, quando o fechamento da empresa ocorre em razão de ato irregular ou ilícito praticado pelo empregador, fica afastado o factum principis”. (Curso de direito processual do trabalho. 4.ed. São Paulo: Forense, 2015, p. 342)

A previsão se assemelha com a situação vivida por muitas empresas, as quais, em razão de decretos estaduais ou municipais, estão impedidas de exercerem suas atividades, no todo ou em parte. Tais decretos decorreram de situação imprevisível, com consequências graves. Isso afeta sensivelmente as receitas e representa fator de dificuldade para a manutenção dos contratos de trabalho.

Contudo, malgrado a semelhança das hipóteses, o ordenamento tem previsão expressa conferindo ao caso enquadramento jurídico diverso. De fato, a Medida Provisória 927/2020, a primeira a dispor sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública derivado da COVID-19, prevê no artigo 1º, parágrafo único:

“O disposto nesta Medida Provisória se aplica durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e, para fins trabalhistas, constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.” (grifo acrescido)

Destarte, por força de lei (art. 62 da CF), as extinções contratuais decorrentes da COVID-19 são caracterizadas como decorrentes de força maior (art. 501), não de factum principis (art. 486).

Muito embora a doutrina classifique o fato do príncipe como espécie de força maior, é evidente que a CLT traz consequências diversas para as hipóteses. A medida provisória fez menção expressa ao artigo que disciplina a força maior, não havendo espaço para aplicação de outro regramento.

O primeiro efeito dessa disposição da medida provisória é excluir do poder público a responsabilidade pelo pagamento da “indenização”. O valor devido será integralmente de responsabilidade do empregador.

O segundo efeito é o de que as verbas indenizatórias decorrentes da dispensa sem justa causa são devidas apenas pela metade (art. 502, II, da CLT). Trata-se do reconhecimento de que, embora o empregador corra os riscos do negócio, não podendo transferi-los para o empregado, a situação imprevisível e inevitável minora a responsabilidade.

É preciso ponderar, contudo, que apenas as dispensas com inequívoco nexo causal com as consequências da COVID-19 é que acarretarão a redução das verbas rescisórias indenizatórias. De fato, se a empresa não sofreu nenhuma restrição apta a afetar seus negócios, não pode valer-se de artimanha para tentar reduzir custos com dispensa de funcionários. Nesse sentido, aplica-se o §2º do artigo 501:

“À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.”

Ante o exposto, verifica-se que não é cabível a dispensa de trabalhadores sem justa causa e sem o pagamento da indenização. Compete ao empregador, e não ao poder público, pagar o valor devido (reduzido, é verdade) dentro dos prazos legais.

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