Paradoxo da “onda”

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O termo da contemporaneidade é “empoderamento feminino”. Vivencia-se o papel das mulheres na sociedade em todas as esferas: social, política, cultural. Depara-se com figuras emblemáticas que representam o poder da mulher na modernidade, tais como Angela Merkel, Michelle Obama, Carmen Lucia, Christina Lagarde, Glória Maria, Michelle Bachelet, Janet Yellen e surpreende-se com novos (velhos) hits de verão espalhados pela internet e pelas ruas, nos quais assiste-se mulheres, homens e crianças dançarem e repetirem a letra de alguma música que coloca a mulher no lugar de objeto sexual do homem.

No início do século XX, Freud descreveu em “O mal estar da civilização”, o papel da mulher representando os interesses da família e da vida sexual; e o trabalho cultural dever dos homens, assim como tarefas mais difíceis, obrigando-os a efetuar sublimações pulsionais, às quais as mulheres seriam menos aptas.

Muito antes de Freud, no século XVI, Shakespeare escreveu “A megera domada”, onde descreve Catarina, uma mulher feroz que nenhum homem conseguia “domá-la”, até que Petruquio surge e ela é “salva” pelo amor e se casa.

Em 2020, muito tempo depois, a mulher atingiu lugar no mercado de trabalho, continua sendo a base do interesse familiar, no entanto, o lugar de objeto sexual permanece inserido no inconsciente coletivo de tal forma que não existe estranhamento algum às letras machistas que surgem a cada instante.

Vive-se um desafio, uma contradição na era do politicamente correto. O “fiufiu” pode ser considerado um insulto, assim como a liderança feita por mulher é classificada como fálica ou como aquela que ocupa o lugar do homem.

Ao receber o prêmio de mulher do ano concedido pela Billboard em 2016, Madonna se definiu uma feminista má após ter sido criticada por Camille Paglia, escritora que atribuiu à artista um retrocesso do papel da mulher. Apresentando sempre como objeto sexual. Em um discurso autobiográfico, a artista relata que na juventude pretendia ser como David Bowie, para ela, “a personificação do espírito masculino e feminino”. Entretanto, a artista deparou-se com a descoberta que não há regras para os homens e, para a mulher permite-se apenas, ser bela, doce e sexy, sem ser inteligente ou sem ter opinião, sem demonstrar o desejo sexual para o mundo e, finalmente, perante a “lei” que a mulher não envelheça!

Os Estados Unidos que se orgulha da liberdade, assiste no novo milênio o presidente eleito, Donald Trump, atribuir a mulher um lugar que definitivamente não mais corresponde à realidade. Onde se gritava Freedom, hoje berra a incoerência!

Pensar em feminismo hoje, não é mais exigir o direito ao voto, o contexto que se presencia é outro e, extremante complexo exigindo reflexões verticalizadas frente ao antagonismo do empoderamento e retrocesso.

 O papel da mulher descrito por Freud há um século coincide com as exigências culturais, trazendo à tona a incoerência do feminismo frente à sexualidade e indagações: Ser feminista é perder o desejo? Ser desejada é se submeter ao machismo? São questões postas na ordem do dia, que inevitavelmente dependem de amadurecimento sociocultural no século XXI.

Há um esforço da sociedade, das mulheres e da própria contingência social em tornar possível o empoderamento feminino, paradoxalmente, há um boicote dessa mesma sociedade em derrubar essa ideia e (re)colocar a mulher de volta no lugar, onde a cultura a trata desde os primórdios.

A questão não é trazer um discurso moral ou ético, mas de reflexão cultural, política e individual sobre o que cada um faz pela mudança ou permanência do lugar da mulher na sociedade.

A consagração do princípio da igualdade pela Constituição da República convive com uma realidade sociocultural de desigualdade, cuja remuneração da mulher é 30 (trinta) por cento menor no mercado, dentre outras tantas desigualdades, que a regulamentação por si só não resolverá. A igualdade há que ser construída.

Indubitavelmente, afirmação de que as mulheres ganham cada vez mais espaço e, simultaneamente, continuam submetidas à velha lógica sexista, é quase clichê. Indaga-se, então, como as mulheres poderão alcançar a efetiva a emancipação feminina?

Uma das respostas é o acesso a educação e instrução dos brasileiros, seja nas grandes cidades ou no interior. Para tanto, urge políticas públicas eficazes para a construção de uma sociedade democrática.

Somente com liberdade e autonomia a mulher poderá ter possibilidade de construção de seu próprio caminho e escolhas: Somente em uma perspectiva de consolidação dos direitos fundamentais, neste caso, a educação digna e de qualidade, poderá contribuir para o processo de construção da cidadania plena.

Há muito a ser debatido, mas é certo que o tão propagado empoderamento das mulheres acontecerá em um espaço que propicie lucidez, inovando assim as melodias da “onda” nas futuras gerações.

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