Prisão por Retenção de Salário

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     A Constituição da República elevou o ser humano à condição de centro do ordenamento jurídico, prestigiando sobremaneira os direitos fundamentais. Dentre esses direitos reconhecidos, encontra-se a consagração da responsabilidade civil patrimonial. Ou seja, a pessoa responde por dívidas com seus bens. Daí a proibição constitucional à prisão civil por dívidas, salvo no caso de inescusável inadimplemento de obrigação alimentícia (art. 5º, XVII, da CF).

     Quanto a este direito fundamental, é importante salientar que, em que pese a Constituição da República admitir também a prisão civil do depositário infiel, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a eficácia deste dispositivo depende de legislação infraconstitucional. Atualmente, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose) a veda expressamente (art. 7º, 7). Essa norma goza de hierarquia infraconstitucional, mas está acima das leis ordinárias. Portanto, considerando o caráter supralegal dos tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro (art. 5°, §2°, da Carta Magna), a eficácia da legislação ordinária estaria paralisada no ponto em que autoriza a prisão do depositário. Nesse sentido é a Súmula Vinculante nº 25 do STF:

     “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.”

     Quanto à prisão civil retratada no artigo 5º, XVII, da CF (devedor de obrigação alimentícia), poder-se-ia argumentar que a própria Carta, no artigo 100, §1º, prevê a natureza alimentícia dos “salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez”. Logo, numa interpretação sistemática, seria possível a prisão coercitiva (civil) para pagamento de salários não adimplidos a tempo.

     Contudo, deve-se apontar que a Jurisprudência pátria tem restringido o alcance da prisão civil exclusivamente aos casos de dívidas de prestação alimentícia em sentido estrito, assim consideradas aquelas pagas em razão do direito de família ou do ato ilícito, condicionadas exclusivamente ao binômio necessidade/possibilidade. Seria o caso das prestações devidas por quem tem, pela lei ou em razão da responsabilidade civil, a obrigação de sustentar outrem. Destarte, as dívidas oriundas de relações contratuais, ainda que em contraprestação ao trabalho, não autorizam a restrição de liberdade, consoante se depreende do artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU), ratificado pelo Brasil:

     “Artigo 11 – Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual.”

     Por isso, um devedor trabalhista não pode ser preso como meio de coerção para saldar a dívida.

    Hipótese diversa a ser analisada é o caso daquele que retém dolosamente o salário. Trata-se do caso de alguém que, tendo o dinheiro disponível, não efetua o pagamento, sem nenhuma razão que justifique validadamente o inadimplemento. Nesse caso, a própria Constituição definiu o fato como crime (art. 7º, X):

     “X – proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;”

    Assim sendo, nesse caso, eventual prisão do empregador não se trataria de um meio de coerção para saldar a dívida, mas sim uma retribuição pelo ilícito penal, com o intuito de retirar o infrator do convívio social, para ressocializá-lo. A prisão não seria civil, mas criminal. Não há, destarte, antinomia (contradição) com a proibição constitucional da prisão civil por dívida. Ambos os dispositivos tratam de coisas diversas, não havendo antinomia real entre elas.

    Por oportuno, esclarece-se que, até o momento, não houve regulamentação do crime por retenção dolosa do salário, tampouco previsão específica de pena. Por tal razão, segundo a doutrina majoritária, não há falar em punibilidade criminal deste fato, pelo menos por ora. Há projetos de lei em tramitação visando a tipificar o crime. Por todos, cita-se o Projeto de Lei 3.009 de 2019, da Câmara dos Deputados, o qual conta com a seguinte redação:

    “Retenção de salário

    Art. 203-A. Reter indevidamente, no todo ou em parte, salário, remuneração ou qualquer outra retribuição devida ao empregado:

    Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa.”

    Contudo, o projeto ainda não foi aprovado. Por ora, tem-se a conclusão de que não há possibilidade de prisão, civil ou penal, por retenção dolosa de salário.

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