Qual tutela jurídica deve ser dispensada aos motoristas de aplicativos?

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Neste artigo, vamos analisar uma questão que tem movimentado os tribunais trabalhistas: os motoristas de aplicativos, como Uber e Cabify, por exemplo, são legalmente considerados empregados?

Essa não é uma questão simples. E, dependendo da resposta que os tribunais derem, não há dúvidas de que os planos de negócios dessas empresas serão severamente afetados. Afinal, é bastante significativo o custo decorrente da formalização dos trabalhadores.

O inovador modelo de negócios em que as companhias de tecnologia promovem a aproximação entre os prestadores de serviços e os consumidores já foi incorporado pela sociedade: Loggi, Rappi, ifood, Uber, dentre inúmeros outros aplicativos similares, já mudaram o padrão de comportamento da população.

Desse modo, é importante termos em vista que a alteração do modelo que vem sendo utilizado impactará diretamente a sociedade. Isso não significa que os trabalhadores devem ficar sem qualquer proteção social para que não se prejudique os consumidores. Longe disso! O que se quer dizer é que esse novo modelo de prestação de serviços surgiu às margens do sistema tradicional de emprego; é necessário, então, que ele seja objeto de uma nova regulamentação, que leve em consideração as suas características peculiares.

Foi nesse mesmo sentido que se posicionou a Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho. Em decisão proferida em setembro de 2020, confirmou-se a decisão do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais que havia negado o vínculo de emprego entre o motorista e a Uber, ao fundamento de que é necessária a edição de lei que regulamente a atividade dos motoristas de aplicativos, não sendo viável utilizar-se a CLT para reger essas relações jurídicas.

E essa decisão realmente parece ser a mais razoável, já que os requisitos que caracterizam a relação de emprego não se encontram presentes: a subordinação, que é a pedra de toque nas discussões relativas ao vínculo de emprego, não se configura nas relações entre o prestador de serviços e o aplicativo.

O que se percebe é uma tentativa de se forçar a caracterização da subordinação. Mas não há como se negar que a subordinação tradicional do direito do trabalho, evidenciada pela sujeição do empregado às ordens ditadas pelo empregador, não ocorre nas relações em que o motorista pode ou não ligar o aplicativo, pode ou não aceitar as corridas, em que ele decide o horário em que trabalha, os dias em que trabalha e a duração de sua própria jornada.

A parassubordinação como nova categoria jurídica

No direito comparado, já se desenvolveu o conceito da parassubordinação, que caracteriza justamente aquelas situações em que, muito embora não se tenha uma típica relação de trabalho, há uma subordinação tênue.

A relação entre o prestador e o tomador de serviços é mais de coordenação do que de subordinação, e a dependência do trabalhador é, sobretudo, econômica.

No entanto, mesmo já tendo se identificado essa híbrida modalidade de prestação de serviços, em que o trabalhador não é tecnicamente empregado, mas desenvolve uma tarefa ligada à atividade-fim do tomador, dele dependendo economicamente, o direito do trabalho ainda não sabe como lidar com essa nova situação.

A simples tentativa de equiparar a parassubordinação à subordinação tradicional, com o intuito de atrair a tutela da CLT, não tem sido admitida pela jurisprudência nacional. E esse, de fato, parece não ser o melhor caminho.

Mas, então, qual a solução?

Break dos aplicativos

A precarização do trabalho que veio na esteira dos aplicativos recebeu até uma nova designação: uberização. E, há pouco tempo, os motoristas de aplicativos suspenderam as suas atividades por alguns dias, chamando a atenção para as suas péssimas condições de trabalho.

Se verificarmos as condições de trabalho desses motoristas, com elevadas jornadas de trabalho, baixa remuneração, ausência de proteção legal e previdenciária e nenhuma segurança social, é fácil entender-se a necessidade de se lhes estender alguma segurança jurídica.

Mas, se um dos requisitos para a caracterização do contrato de trabalho não está presente, como se daria essa proteção?

A boa-fé objetiva e os deveres anexos nas relações contratuais

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002, o princípio da boa-fé objetiva ganhou força. A ideia de que existe um padrão de conduta desejável, que deve ser observado pelas partes em suas relações negociais, já não enfrenta mais muitas críticas.

As expectativas legítimas das partes no momento da celebração do negócio deverão ser mantidas ao longo do iter negocial. As partes devem agir com lealdade, probidade, respeito, cooperando para que o fim por elas desejado seja atingido.

Um dos deveres anexos que decorrem da boa-fé objetiva é justamente o dever de cuidado, que seria o dever de zelar também pelo interesse da contraparte. É claro que não se exige que o contratante coloque os interesses do cocontratante acima dos seus próprios interesses; afinal, o contato ainda é o instrumento em que se harmonizam vontades que, embora convergentes, são opostas.

Quando trazemos o dever de cuidado do direito contratual para as relações caracterizadas pela parassubordinação, fica fácil assumir que nesses casos o tomador dos serviços, justamente por ser a parte com maior poder negocial, também pode assumir o ônus de zelar pelos interesses da contraparte.

Os prejuízos físicos e emocionais decorrentes de jornadas longas e extenuantes, da exposição a agentes insalubres, da ausência de períodos regulares de descanso, de uma remuneração inadequada, já são por demais conhecidos.

Concluindo…

Por isso, parece bastante razoável entender que, dentre os cuidados que o tomador dos serviços prestados pelos motoristas de aplicativos devem observar, incluem-se a proibição de jornadas excessivas, a fixação de parâmetros remuneratórios adequados, a fixação de períodos adequados de descanso, dentre outros que podem ser extraídos da própria legislação trabalhista.

É claro que a ideia não é aplicar a CLT, por analogia, às relações em que se verifica a parassubordinação. Essa seria uma forma nada sutil de justificar a incidência das regras celetistas àquelas situações que não comportam tais regras. Mas, por outro lado, é um meio de trazer um pouco de segurança jurídica àqueles trabalhadores que, atualmente, não dispõem de qualquer proteção legal.

A proposta não é simples, devemos reconhecer. Mas representa uma tentativa de se estabelecer limites mínimos para a tutela dos motoristas de aplicativos. Como a violação dos deveres anexos pode ser compreendida como uma espécie de inadimplemento, ensejando a reparação civil por parte do ofensor, podemos então concluir que aos aplicativos que exploram os serviços prestados por motoristas autônomos, cabe diligenciar para assegurar uma mínima proteção aos legítimos interesses desses motoristas, sob pena de serem civilmente responsabilizados.

Por fim, uma outra discussão que poderia ser aventada se refere a quais cuidados deverá o contratante observar e quais relações jurídicas parassubordinadas esse raciocínio se aplicaria. Mas esse é um tema a ser tratado em um novo artigo!

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