Viktor Frankl, psiquiatra sobrevivente do holocausto, descreveu em seu livro Em busca de Sentido que pessoas sensíveis, habituadas a uma vida intelectual e cultural ativa, sofreram as torturas dos campos de concentração, mas com menor impacto sobre sua existência. Vivemos tempos sombrios: uma pandemia, crise econômica e insegurança política, que me trazem muita angústia e incertezas. Na busca por respostas, a arte, especialmente a literatura, tem me ajudado a compreender melhor nosso tempo.
Li, recentemente, “Holocausto: uma nova história”, do historiador e documentarista britânico Laurence Rees. A prazerosa e impactante leitura, bem fundamentada pela pesquisa realizada pelo escritor ao longo de 20 anos, é entrecortada por momentos de profunda tristeza ao se constatar o que a nossa espécie é capaz de fazer sob determinadas circunstâncias.
Hitler, apesar de ter sido o principal responsável pelo holocausto, não fez tudo sozinho. A responsabilidade foi coletiva. A humilhação que a Alemanha sentia, somada à crise econômica e política que sucederam à Primeira Guerra, fizeram emergir um líder improvável, incapaz do debate político e com sérios problemas de relacionamentos humanos. Com apoio de intelectuais e profissionais (médicos, advogados, arquitetos) bem sucedidos, o Terceiro Reich decidia o que fazer com os milhares de judeus, de doentes mentais e outros prisioneiros que se encontravam nos guetos e campos de concentração. Na conferência de Wansee, ocorrida em 1942, um dos mais importantes encontros em que se debatia a Solução Final para os judeus, à mesa estavam pessoas instruídas. Das 15 figuras principais reunidas para tratar sobre o tema, 8 tinham doutorado. Portanto, não foram ações definidas por pessoas incapacitadas ou loucas.
A banalidade do mal, tão bem definida por Hannah Arendt, pode ser constatada em diversas partes do livro, desde o envolvimento de políticos, de governantes de diversas partes do mundo, do exército alemão e de soldados do eixo, das próprias comunidades invadidas e até mesmo de alguns colaboradores judeus. O Dr. Irmfried Eberl, médico com 31 anos à época, em carta à sua esposa, relata que estava muito contente e orgulhoso do trabalho que estava realizando. Ele era o responsável por campos de extermínio como o de Treblinka e o centro de eutanásia de Brandenburg. Fato este que denota o tipo de consciência que tinham, especialmente, os profissionais envolvidos nas fábricas de morte nazista.
O sofrimento provocado por milhares de assassinatos, estupros, castigos, maus tratos de toda ordem, doenças, fome, vivenciados pelos sobreviventes é algo que deixa marcas por toda a vida. Toivi Blatt, um deles, relata que “as pessoas mudam sob certas condições […] ninguém conhece a si mesmo. Às vezes, quando alguém se mostra realmente bom comigo, eu me vejo pensando: como seria essa pessoa em Sobibór (campo de concentração)?”
O mundo continuou após a morte de milhões de judeus, de homossexuais, de prisioneiros de guerra, de contrários à política nazista, de ciganos, pois não foram apenas os judeus a serem sacrificados nesse triste momento de nossa história. O mesmo sobrevivente Tovi Blatt, sonderkommando (termo dado aos judeus forçados a trabalhar nas câmaras de gás nos campos de concentração), após concluída a morte de três mil pessoas numa câmara de gás, olha para o céu e diz: “Nada havia acontecido. As estrelas continuavam no mesmo lugar”.
Muita gente, soldados, populares, vizinhos, conhecidos, intelectuais, médicos, apoiaram ou fizeram o que fizeram por acreditar no discurso nazista de que os judeus eram os responsáveis por aquela situação. Aqueles que apoiavam e elogiavam a recusa de Hitler em fazer concessões em um momento inicial da guerra, passaram a ver esse comportamento como fraqueza. Mas já era tarde demais.
É preciso atenção e alerta para qualquer movimento totalitário, ditatorial, radical e populista. Pensamento crítico e consciência são fundamentais para uma escolha autêntica. Para que não nos esqueçamos e evitemos que algo semelhante volte a acontecer é fundamental sabermos nos posicionar frente à história, conscientizando-nos de nossas escolhas. Elas podem significar coisas simples do dia a dia, mas podem também significar o rumo de um povo, de um país.
Como descreve Albert Camus, “o bacilo da peste não desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido. […] para desgraça e ensinamento dos homens”, a peste pode acordar os ratos e os mandar morrer numa cidade feliz. A peste para Camus, nesse relato, se tratava de uma metáfora ao nazismo.
Regimes totalitários são como ratos à espreita. Precisamos estar sempre atentos!